Cultura

Cientistas identificam trecho do poema Geórgicas I, de Virgílio, em pote de azeite de quase 2.000 anos

Fragmentos de cerâmica foram encontrados em um sítio arqueológico de Córdoba, na Espanha, em 2016, entre eles, o que continha os versos do famoso poeta romano

Por João Paulo Martins  em 23 de junho de 2023

Pedaço da ânfora usada para por azeite com trecho de poema da obra Geórgicas I, de Virgilio (Foto: Iván González Tobar/Journal of Roman Archaeology/Reprodução)

 

Em outubro de 2016, arqueólogos encontraram vários fragmentos de cerâmica, incluindo azulejos e potes, na região de Noguera, próximo do povoado de Villalón, em Córdoba, na Espanha. Entre os achados havia pedaços de ânforas usadas para colocar azeite e que datavam de cerca de 2.000 anos atrás. Um pedaço de ânfora com inscrições em latim foi analisado e cientistas descobriram que se tratava de um trecho do poema Geórgicas I, do poeta romano Virgílio (70 a.C. a 19 a.C.), famoso pela obra Eneida. Os resultados foram publicados em 5 de junho no periódico científico Journal of Roman Archaeology, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

(Foto: Iván González Tobar/Journal of Roman Archaeology/Reprodução)

Os versos fazem parte da primeira estrofe do poema Geórgicas I e eram usados ​​em Roma para ensinar as crianças a ler. O que mais impressionou os cientistas é que o escrito estava na ânfora. Como mostra o jornal espanhol El País, já se sabia que os produtores de azeite da região romana de Bética, atual Andaluzia, na Espanha, gravavam nomes de pessoas, datas ou lugares nos potes de cerâmica, mas nunca poemas. No fragmento recém-analisado, de 1,2 cm de espessura, oito de comprimento e seis de largura, pesquisadores decifraram cinco linhas formadas por grupos de duas ou três palavras. Elas foram escritos com um palito enquanto o vaso estava secando de cabeça para baixo.

“A autoria e a verdadeira intenção de quem os escreveu são difíceis de determinar, mas todos os indícios apontam para alguém que não quis ser visto, pois foi inscrito na parte inferior da ânfora”, explica o pesquisador Iván González, da Universidade de Córdoba, na Espanha, um dos autores do estudo, citado pelo jornal.

Os cientistas lembram que já foi comprovada a presença de crianças nas olarias rurais que fabricavam esses recipientes. Possivelmente os escritos foram feitos por um adulto para ensinar uma criança a ler, ou então, por um jovem que decorou os versos e os gravou. “A presença dessa escrita na cadeia produtiva [de ânforas] implica uma alfabetização notável na região de Bética, em contraste com a visão clássica de um mundo rural isolado”, comenta o pesquisador espanhol, citado pelo El País.

Virgílio foi o poeta mais popular de seu tempo. A obra Eneida foi ensinada nas escolas e seus versos serviu de exercício pedagógico por muitas gerações. Por isso, é comum encontrar restos de cerâmicas de construção com versos do poeta romano, o que levou muitos cientistas a associá-los a funções educativas.

Por que versos de Geórgicas I, em vez de Eneida? Segundo os pesquisadores, uma explicação seria o conteúdo da obra Geórgicas, que é dedicado à agricultura, sobre o modo de vida eminentemente rural. Portanto, sua utilização pedagógica “não é despropositada, sobretudo quando se confirma a presença notável de crianças nas olarias”.  Mas os cientistas ainda discutem se esse gravação foi um “exercício mecânico, de simples entretenimento, ou uma prática de escrita de alguém que registrou alguns versos que aprendeu na infância e deixou a citação inacabada, seja por lapso de memória ou porque mudou repentinamente de atividade”.

 

"Trocou a glande caônia pela espiga rica e misturou as águas do Aqueloo às uvas descobertas" (Foto: Iván González Tobar/Journal of Roman Archaeology/Reprodução)

 
Veja o trecho do poema Geórgicas I em latim:

 

Quid faciat lactas segetes, quo sidere terram uertere, Maecenas, ulmisque adiungere uitis conueniat, quae cura boum, qui cultus habendo sit pecori, apibus quanta experientia partis, hinc canere incipiam. Vos, o clarissima mundi lumina, labentem caelo quae ducitis annum, Liber et alma Ceres, uestro si munere tellus Chaoniam pingai glandem mutauit arista poculaque inuentis Acheloia miscuit uuis; et uos, agrestum praesentia numina, Fauni, ferte simul Faunique pedem Dryadesque puellae: munera uestra cano. Tuque o, cui prima frementem fudit equom magno tellus percussa tridenti, Neptune, et cultor nemorum, cui pinguia Ceae ter centum niuei tondent dumeta iuuenci; ipse, nemus linquens patrium saltusque Lycaei, Pan, ouium custos, tua si tibi Maenala curae, adsis, o Tegeaee, fauens; oleaeque Minerua inuentrix, uncique puer monstrator aratri; et teneram ab radice ferens, Siluane, cupressum; 
 

 

Agora, o trecho do poema Geórgicas I em português:

 

O que torna as searas alegres, sob qual astro convém volver a terra, Mecenas, e unir a videira aos olmos, que cuidado pedem os bois, que trabalho o rebanho de alguém e quanta destreza nas abelhas frugais começarei a cantar daqui. Ó vós, luzes claríssimas do mundo, que conduzis o curso anual no céu! Ó Líber e Ceres criadora, se por vosso dom a terra trocou a glande caônia pela espiga rica e misturou as águas do Aqueloo às uvas descobertas! E vós Faunos, numes benfazejos aos agricultores, vinde juntos Faunos e moças Dríades: canto vossos dons! E tu, ó Netuno, para quem pela primeira vez a terra, batida pelo grande tridente, gerou um cavalo a fremir! E tu, morador dos bosques, para quem trezentos bezerros de neve tosam os ricos sarçais de Cea! Tu mesmo, Pã guardador de ovelhas, deixando o bosque paterno e as clareiras liceias, vem assistir e ajudar, ó Tegeu, se te importas com teu Mênalo! Minerva criadora da oliveira, menino inventor do arado curvo e Silvano, portando um cipreste novo desenraizado! 

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